No entanto, a tematização da epidemia, seja em chave mais realista ou mais simbólica, frequenta a literatura desde muito antes. Ela serve, por exemplo, de moldura narrativa para o Decameron, do italiano Giovanni Bocaccio, em cujo início se lê:
LITERATURA E DOENÇA
Por Coletivo Leitor - 01 abr 2020 - 6 min
No entanto, a tematização da epidemia, seja em chave mais realista ou mais simbólica, frequenta a literatura desde muito antes. Ela serve, por exemplo, de moldura narrativa para o Decameron, do italiano Giovanni Bocaccio, em cujo início se lê:
“… os anos da frutífera encarnação do Filho de Deus já havia chegado ao número 1348 quando na insigne cidade de Florença, a mais bela de todas da Itália, ocorreu uma peste mortífera, que – fosse ela fruto da ação dos corpos celestes, fosse ela enviada aos mortais pela justa ira de Deus para correção de nossas obras iníquas – começara alguns anos antes no lado oriental, ceifando a vida de incontável número de pessoas, e, sem se deter, continuou avançando de um lugar a outro em direção ao ocidente.”(Giovanni Bocaccio. Decameron. Tradução de Ivone C. Benedetti. Porto Alegre, L&PM, 20113, 1ª ed.)
Mas muitos outros títulos poderiam ser chamados a compor a nossa lista, vindos de tempos ainda mais remotos, como a tragédia de Sófocles, Édipo Rei, herói cujos crimes não expiados – o parricídio e o incesto – trazem a peste para Tebas. Vale também evocar o romance menos conhecido do inglês Daniel Defoe, Um diário do ano da peste, publicado em 1719; a primorosa novela do alemão Thomas Mann, Morte em Veneza, sobre a epidemia de cólera em Veneza, publicado originalmente em 1912, ou O amor nos tempos do cólera, do colombiano Gabriel García Marques, lançado em 1985, para ficarmos em apenas alguns exemplos.
LITERATURA E DOENÇA
Por Coletivo Leitor - 01 abr 2020 - 6 min
No entanto, a tematização da epidemia, seja em chave mais realista ou mais simbólica, frequenta a literatura desde muito antes. Ela serve, por exemplo, de moldura narrativa para o Decameron, do italiano Giovanni Bocaccio, em cujo início se lê:
“… os anos da frutífera encarnação do Filho de Deus já havia chegado ao número 1348 quando na insigne cidade de Florença, a mais bela de todas da Itália, ocorreu uma peste mortífera, que – fosse ela fruto da ação dos corpos celestes, fosse ela enviada aos mortais pela justa ira de Deus para correção de nossas obras iníquas – começara alguns anos antes no lado oriental, ceifando a vida de incontável número de pessoas, e, sem se deter, continuou avançando de um lugar a outro em direção ao ocidente.”(Giovanni Bocaccio. Decameron. Tradução de Ivone C. Benedetti. Porto Alegre, L&PM, 20113, 1ª ed.)
Mas muitos outros títulos poderiam ser chamados a compor a nossa lista, vindos de tempos ainda mais remotos, como a tragédia de Sófocles, Édipo Rei, herói cujos crimes não expiados – o parricídio e o incesto – trazem a peste para Tebas. Vale também evocar o romance menos conhecido do inglês Daniel Defoe, Um diário do ano da peste, publicado em 1719; a primorosa novela do alemão Thomas Mann, Morte em Veneza, sobre a epidemia de cólera em Veneza, publicado originalmente em 1912, ou O amor nos tempos do cólera, do colombiano Gabriel García Marques, lançado em 1985, para ficarmos em apenas alguns exemplos.
Se passamos das epidemias em sentido estrito ao campo mais vasto das doenças e a literatura, o rol de obras se avoluma consideravelmente, chegando mesmo a influenciar certos estilos de época (o que seria a poesia romântica sem a tuberculose?).
Mas o que buscam os leitores nessas obras cujas páginas se abrem ao vírus e à bactéria, ao verme e ao carbúnculo? O consolo de entender como outros, antes de nós, padeceram de modo semelhante, sucumbindo ou sobrevivendo, desistindo de lutar ou legando aos pósteros o testemunho de seus esforços e de sua esperança?
Neste momento em que, por causa do confinamento, a literatura é receitada como distração ou remédio contra o tédio, principalmente para as crianças confinadas, afastadas do cotidiano escolar, para leitores mais velhos, o benefício da literatura talvez derive tanto do seu potencial de “evasão” da realidade quanto do contato que ela propicia com seus aspectos mais sombrios.
Nesse sentido, obras que tematizam a doença na literatura, os padecimentos, a morte e o luto revestem-se de grande importância justamente por nos desalienar diante do que consideramos as condições “normais” de existência, e que muitas vezes nos afastam de aspectos decisivos da experiência humana. Situações que suspendem a suposta “normalidade” das coisas, a qual pode não passar de uma ilusão consentida, podem até mesmo nos despertar para o que há de opressivo em uma vida que nunca sai dos trilhos.
Romper com os hábitos perceptivos, impelir a sensibilidade noutras direções pode ser, assim, um dos benefícios da literatura (até quando ela própria se converte em uma “doença”, o bovarismo, como bem demonstrou Gustave Flaubert).
Além disso, mesmo para leitores menores, a tematização da doença na literatura para desmistificar certa concepção edênica da infância, segundo a qual os tumultos do corpo e do mundo deveriam guardar certa distância das páginas oferecidas a esse público.
No entanto, sob o pretexto de oferecer o que se julga mais apropriado aos leitores, conforme a idade, o temperamento e as circunstâncias, muitas vezes se perde a oportunidade de estabelecer relações fecundas entre o que se lê o que se vive, ou de levar o leitor à descoberta da própria literatura como uma experiência viva, capaz de elevar a temperatura de quem dela usufrui, fonte de uma febre benigna que nos imuniza contra a desumanidade.
LIVROS SOBRE LITERATURA E DOENÇA
A seguir, conheça algumas obras (informativos e livros de ficção) do nosso catálogo sobre literatura, doença, peste e epidemia.
Como seria sua vida na Idade Média, de Fiona Macdonald
Ao contrário do que se costuma dizer, a Idade Média foi um período de inovações políticas, realizações artísticas e mudanças sociais. Este livro retrata o modo de vida do homem da época, a construção de fortalezas e catedrais, os temores, a fome, a peste e outros aspectos que marcaram o período.
Por dentro do sistema imunológico, de Paulo Roberto da Cunha
O conhecimento do complexo sistema imunológico humano, responsável direto por nossa saúde está entre os grandes avanços da ciência no século XX. Por dentro do sistema imunológico aborda os conceitos de saúde e doença, desenvolvendo temas como os mecanismos de defesa empregados pelo organismo para se defender dos micróbios invasores, os dois tipos de imunidade (a natural e a adquirida), as situações em que a medicina julga desejável coibir ou suprimir as defesas imunológicas (por exemplo, para evitar a rejeição de um órgão transplantado) etc.
Édipo Rei, de Sófocles, adaptado por Cecília Casas
Uma terrível maldição abate o reino de Tebas: fome, doenças e esterilidade dizimam os cidadãos. Tirésias, o cego adivinho, revela ao rei Édipo a causa de tantos males: o monarca monarca assassinara Laio, seu próprio pai, e unira-se incestuosamente com sua mãe, Jocasta.
Depois daquela viagem, de Valéria Polizzi
A adolescente Valéria narra como contraiu o vírus HIV durante uma relação sem preservativo com o namorado e conta como convive com a doença. Uma leitura indispensável para a educação do adolescente.
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